A cena passa-se num gabinete
da Polícia de Leiria. Uma agente bate à porta do gabinete do
Inspetor Barrelas.
- Entre, entre Maria
Garcia... Então o que é que temos?
- Está lá fora a moça que atropelou um homem, na estrada Marinha
Grande/Leiria.
- Ah, sim. Já li a comunicação do acidente. Já sabe alguma coisa
do homem acidentado?
- Ainda não inspetor.
- E já ligou para o hospital para saber alguma coisa?
-Já, mas também ainda não têm a identificação do homem, e assim,
é difícil fornecer informações.
- E os agentes que tomaram conta da ocorrência?
- Também não sabem nada, pois, a vítima não trazia qualquer
identificação. E pelos vistos, o homem, não era conhecido por
aqueles lados.
- Está bem agente Garcia. Pode mandar entrar a moça.
- A senhora pode entrar para falar com o Sr. Inspetor ...
- Com licença, senhor Inspetor.
- Entre, entre. Boa-tarde e esteja à vontade. Pode sentar-se.
- Muito obrigado, senhor inspetor Barrelas.
- Estou a ver que a senhora está muito nervosa!
- Mais ainda, Sr. inspetor: super nervosa. Já conduzo há mais de
três anos, e nunca me tinha acontecido uma cena destas…
posso-lhe dizer, que foi o momento mais terrível de minha vida.
- Tenha calma... Muita calma e conte-me tudo... Mas tudo, o que
aconteceu.
- Tinha acabado as aulas em Leiria e, como habitualmente
regressava a casa, na Marinha Grande. Estava e ainda está um
medonho temporal com muita neblina.
- A senhora vinha sozinha, ou acompanhada?
- Vinha sozinha, senhor inspetor.
- Continue, continue.
- Como também habitualmente, vinha a conduzir com todas as
precauções, quando, da subida em plena curva...
- Então, está referir-se a dizer que o acidente deu-se na curva
apertada, já perto de Albergaria, não é assim?
- Exatamente como o Sr. Inspetor está a dizer... Continuando: em
plena curva, apareceu-me a menos de três metros, um vulto...
- Recapitulando: pelo que me conta, o local aonde se deu o
acidente, é uma curva apertada e ligeiramente a subir - não é
assim?
- É sim, Sr. inspetor. É uma curva apertada e a subir. Tentei
travar antes do embate, mas não consegui. Foi horrível Sr.
inspetor... Foi horrível!
- Diga-me então, a quantos metros ficou o seu carro da vítima?
- Como os guardas mediram, a cerca de três metros do carro.
- Outro pormenor: a senhora abalroou a vítima na faixa asfaltada
e de rodagem?
- Sim, sim apanhei-a na faixa de rodagem, e de costas...
- De costas?!
- Sim, de costas porque o sentido de marcha do peão, era o mesmo
que o meu.
- É estranho, iam ambos no mesmo sentido de marcha? Bem, temos
uma testemunha ocular, vamos ver o que ela nos vai contar.
Entretanto, diga-me o seu nome completo.
- Hortense Azevedo.
- E é professora em Leiria?
- Sim, ou leccionava, pois, com o carro no estado em que ficou,
já nem sei... O carro era como as minhas pernas, pois era-me
indispensável para eu poder exercer a minha profissão, pois
termino as aulas bastante tarde.
- Lamento muito, D. Hortense. Por agora é tudo e mantenha-se em
contacto connosco.
- Com licença. Muito obrigado Sr. inspetor...
Minutos depois da moça sair do gabinete, a agente Garcia
aproxima-se do gabinete do inspetor e bate à porta.
- Senhor inspetor Barrelas, posso entrar?
- Entre, entre guarda Garcia.
- Desculpe-me vir incomodá-lo, mas...
- Não tem importância. Então diga lá então.
- O homem que teve o acidente... Aquele da curva da estrada de
Albergaria...
- Sim, pode continuar...
- Acaba de morrer no hospital.
- E já sabemos a sua identidade?
- Ainda não, pois a vítima, como o Sr. inspetor sabe, não trazia
documentação consigo.
- Se ninguém o procurar nas próximas horas, teremos de fazer um
apelo via rádio. Mas vamos aguardar um pouco mais.
- Posso retirar-me?
- Pode. Diga-me se a testemunha ocular deste acidente, já
chegou...
- Ainda não, mas assim que chegar, avisá-lo-ei, Sr. Inspetor.
Cerca de uma hora
depois.
- Senhor inspetor, a
testemunha ocular do acidente, acabou mesmo agora de chegar...
- Pode mandá-lo entrar.
- Boa-tarde, Sr. inspetor. Desculpe-me de chegar um pouco
atrasado, mas…
- Não tem importância. Então conte-me lá o que viu.
- Senhor Inspetor Barrelas, eu vinha de motorizada atrás do
carro que provocou o acidente e, em determinado momento,
apercebi-me que o carro tinha atropelado um homem...
- Há, viu logo que tinha atropelado um homem... Continue,
continue que estou a gostar de ouvi-lo...
- Então, com sua licença vou continuar. Chovia torrencialmente
nesse momento...
- Olhe lá, e a visibilidade era boa?
- Não, não era muito boa, pois mal se via a mais de dois metros.
Mas como ia a dizer...
- Um momento. Disse-me que a visibilidade era má, não foi?
- Sim, sim. Estava uma noite horrível, Sr. Inspetor...
- Pois, pois estou a ver... E você viu logo que a automobilista
tinha atropelado um homem, não foi?
- Bem... Supus... Que fosse um homem... é que uma mulher, aquela
hora e com aquele tempo, com certeza que não se aventuraria a
sair de casa ...não está de acordo, Sr. inspetor Barrelas?...
- Eu não sei nada e, faço-lhe notar que as declarações são suas.
Outra questão: a que velocidade ia o carro que abalroou a
vítima?
- Não sei bem... Mas seguia a alta velocidade... E por isso é
que se deu o acidente, pois se fosse a velocidade moderada...
- Então, o carro ia a alta velocidade... E você ia atrás dele,
não é assim?
- Certo, Sr. Inspetor. No momento em que se deu o acidente,
estava quase a ultrapassá-lo... Por isso vi tudo...
- Pois é, pois é...então você também ia a alta velocidade?
- Eu não... Eu não, Sr. Inspetor!... É que... É que...
- Desembuche lá, homem, e diga a verdade.
- Eu não ia a alta velocidade, Sr. inspetor...
- Pois não, não ia em alta velocidade. Só que no momento do
embate pretendia ultrapassar o carro que seguia à sua frente, e
este sim, ia a alta velocidade! Mais uma vez lhe faço notar que
as declarações são suas. Como me disse, o senhor diz que viu
toda a cena do acidente, embora estivesse uma noite muito escura
e com pouca visibilidade e chovia torrencialmente. Além disso,
estava quase a ultrapassar o carro causador do acidente, isto em
sua opinião. Confirma tudo o que disse?
- Pois, pois... Confirmo tudo, Sr. inspetor...
- Pois bem, vamos continuar: diga-me qual era o sentido de
marcha da vítima: Leira/Marinha Grande ou vice-versa?
- Como é lógico, o sentido de marcha... Era... Devia de ser...
Leiria/ Marinha Grande... Não é, Sr. Inspetor?
- O senhor é que sabe. Não foi você que viu tudo?
- Fui... Mas...
- Então assine aqui as suas declarações, que as considero
demasiadamente confusas.
Após a saída da testemunha,
O inspetor tocou uma campainha para chamar a sua
subordinada.
- Chamou, senhor
inspetor Barrelas?
- Chamei sim. Agente Garcia. Já alguém reclamou o corpo ou
identificou a vítima do acidente em questão?
- Ainda ninguém reclamou o corpo, Sr. inspetor. O corpo vai ser
hoje autopsiado, não sei a que horas...
- Então faça o apelo via rádio. Vamos ver se vai aparecer
alguém.
Horas depois…
- Senhor inspetor,
posso entrar? Está aqui uma senhora que identificou a vítima do
acidente da estrada de Albergaria.
- Ótimo. Mande-a entrar.
- Com sua licença... Boa-tarde, Sr. Inspetor.
- Boa tarde, minha senhora e pode sentar-se. Então identificou o
corpo do acidentado?
- Sim, identifiquei-o, Sr. inspetor. O rapaz era meu hóspede já
a alguns dias. O Paulo...
- Paulo?
- Sim, era o seu nome. Por aquilo que ele me contou, era
português. A mãe morreu há pouco tempo, e assim, o pai mandou-o
para cá, pois psicologicamente o Paulo estava com a moral muito
em baixo. Foi uns amigos comuns que indicaram a minha casa.
- Muito bem. E agora diga-me: o comportamento dele, digamos, era
normal?
- Normal... Normal, não sei. Saia muito, e confesso, ele andava
com um grupo de amigos, que eu não gostaria que algum dos meus
filhos andasse...
- Então porquê, pode explicar melhor?
- Olhe Sr. inspetor, não lhe sei explicar bem...
- Muito bem. E o Paulo deixou alguma coisa em sua casa, como por
exemplo, objetos pessoais, cartões de identificação, valores,
etc.?
- Só deixou este malote, que eu ainda nem sequer o abri.
- Está bem, minha senhora. Muito obrigado pela sua colaboração.
Mas antes de se ir embora, gostava de saber se o Paulo ficou a
dever-lhe alguma coisa?
- Não me ficou a dever nada, Sr. Inspetor. Ele contava ficar na
Marinha Grande trinta dias, e pagou tudo adiantado...
- Mais uma vez o meu muito obrigado pela sua colaboração...
Depois da saída da
testemunha, o inspetor Barrelas chama a agente Garcia.
- Agente, telefone
para este número da Alemanha e avise que Paulo Azevedo morreu, e
que o funeral será... Será não sei quando?
- Deve ser depois de amanhã, Sr. Inspetor.
- Sabe se o corpo já foi autopsiado?
- Já foi sim e, segundo me disseram, o rapaz estava com uma
enorme "pedrada" de droga.
- Droga?
- E muita, Sr. Inspetor!...
- Já calculava que teria sido uma situação dessas. Um indivíduo
sozinho e aquela hora, numa estrada deserta e escura, e debaixo
de um grande temporal …
- Só podia estar com uma enorme "pedrada" de droga!
- Bem, não se esqueça de avisar a família, que segundo me
consta, deve ser só o pai. Já lhe dei o número telefónico da
Alemanha, não lhe dei?
- Já sim, Sr. inspetor. Vou já para o meu gabinete tentar a
ligação internacional.
- Vá, vá mas faça o aviso com muito cuidado, porque estes casos
são muito difíceis...
No outro dia ao meio
da tarde.
- Senhor inspetor, já
chegou da Alemanha o pai do rapaz… Aquele rapaz que morreu na
estrada Marinha Grande / Leiria...
- Há sim, sim. Pode mandá-lo entrar.
- O Sr. pode entrar, pois o Sr. Inspetor vai já recebe-lo.
- Muito obrigado. Dá-me licença, Sr. inspetor?
- Entre e esteja à sua vontade. Pode sentar-se. Sou o inspetor
Barrelas. Pode dizer-me seu nome?
- O meu nome é Artur Azevedo. Senhor Inspetor, mataram, mataram
o meu querido filho!
- Tenha calma. Senhor Azevedo, foi um lamentável acidente. Só o
Tribunal é que vai decidir quem foi o culpado: se o seu filho ou
a automobilista.
- Ora, Sr. inspetor, quem foi o culpado? Está mesmo a ver-se:
uma moça, que segundo me disseram bastante, bastante nova e
aquela hora...
- Caro Sr. Artur Azevedo, não podemos nem devemos nem sequer
podemos tomar ou assumir posições, assim de ânimo leve. A moça
que atropelou seu filho...
- Que matou, que assassinou o meu filho, quer o Sr. Inspetor
dizer!
- Vamos com calma por favor. Bem, a moça em questão dá aulas em
Leiria, e aquela hora regressava a casa, depois de um dia de
trabalho.
- Antes não tivesse regressado, pois assim, não teria morto –
assassinado - o meu único e querido filho. Ainda há pouco perdi
a minha mulher, a mãe do Paulo, com uma daquelas doenças que não
perdoam. Agora, assassinaram o meu único filho, o meu querido
filho! Que infeliz me sinto...
- Lamento muito esse facto. Mas Sr. Artur Azevedo, foi um
acidente.
- Com certeza que essa moça maluca ia a alta velocidade.
- Pelo que já ouvi de uma testemunha ocular, creio que não...
O diálogo é
interrompido por um toque na porta do gabinete.
- Senhor Inspetor
Barrelas, dá-me licença?
- Entre. Então, o que é que temos, agente Garcia?
- A moça... A moça do acidente …
- Sim, sim o que é que se passa?
- Está cá e deseja falar com o Sr. inspetor e com o pai da
vítima. Faz questão em ser atendida agora...
- Mas não está convocada... Olhe, mande-a entrar...
- Com sua licença, Sr. Inspetor Barrelas.
- Por aquilo que ouvi, foi esta mulher a causadora da morte do
meu filho! Assassina... Assassina, que roubou a vida ao meu
querido e único filho, o meu Paulo!
- Senhor Artur Azevedo, por favor, agradeço-lhe que se sente e
que se mantenha calmo. Não admito histerias na minha presença.
Calma.
- Este senhor está a ofender-me, eu não matei o seu filho por
quer. A noite estava muito escura e chovia muito. Seu filho
caminhava no mesmo sentido de marcha que eu. Só o vi a dois ou
três metros, e não pode evitar o brutal embate.
- Se você transita-se mais devagar, com certeza que teria
evitado o acidente e a consequente morte do meu querido Paulo.
- Mas eu circulava muito devagar. Um acidente qualquer um pode
ter...
- Um acidente estúpido, que roubou a vida a um jovem de 18 anos,
o meu querido filho, o meu Paulo!
- Caros senhores, os acidentes são todos estúpidos. Mas como já
tive oportunidade de dizer ao senhor Artur Azevedo, o tribunal é
que vai decidir se esta senhora é ou não culpada. Para isso é
que estou a organizar este processo.
- Eu nem quero acreditar que o meu Paulo esteja morto. E fica
assim um homem sozinho no Mundo! Tantos anos de trabalho no
duro, para quê? E tudo por culpa desta senhora. Sim, da senhora,
que matou o meu filho. Assassina!
- Senhor Artur, mais uma vez lhe peço que se acalme e que modere
a linguagem. Diga-me uma coisa, o senhor não tem mais família?
- Fui trabalhar para a Alemanha muito novo e casei com uma
senhora portuguesa que lá conheci. Mais tarde divorciei-me e
regressei a Portugal onde voltei a casar. Tenho uns primos... Ou
devo ter uns primos, mas não sei bem. E talvez uma tia ainda
viva. Fui para a Alemanha trabalhar no duro. E para quê? Para
que uma assassina qualquer, matar o meu único filho.
- Senhor Artur Azevedo, eu não sou nenhuma assassina! Nunca, mas
nunca lhe hei-de perdoar, meu caro senhor! Diz que trabalhou no
duro, mas eu desde que me conheço, sempre tive de trabalhar
também no duro, pois fui criada com uma pobre mãe, que se
esgotou a trabalhar até à morte, para me poder alimentar e
dar-me um curso, para que eu pudesse ser uma moça digna. Pobre
mãe!
-D. Hortense, por favor, acalme-se.
- Peço-lhe desculpa, Sr. Inspetor, mas não posso conter a minha
revolta. E vem agora um homem que eu não conheço de lado nenhum,
chamar-me assassina. o seu filho, além de seguir no mesmo
sentido de marcha que eu, circulava também dentro da faixa de
rodagem. E isto tudo dentro de uma curva fechada, numa noite
escura e com muita chuva; e com carros a passarem na faixa
contrária...
- Olhe que não acredito em nada que você diz. Meu filho Paulo,
sempre foi muito cuidadoso...
- Mas naquele dia, infelizmente, não foi. Ele perdeu a vida, e
eu fiquei com o carro, que ainda o ando a pagar, todo desfeito.
E sem carro, não posso dar aulas até à noite. E vem ainda este
senhor, que repito, o não conheço de nenhum lado, chamar-me
assassina. Que injustiça, meu Deus!
- Escusa de estar p'ra aí com esses prantos, pois como já lhe
disse, não acredito em nada que você diz. E aqui o Sr. Inspetor,
também não – não é verdade?
- Senhor Artur Azevedo, a minha opinião não conta. O Tribunal é
que há-de decidir.
- Meu caro senhor eu não lhe posso perdoar as suas palavras
injustas, nunca, nunca. Também nunca mais hei-de pôr-lhe os
olhos em cima. Senhor inspetor, peço-lhe licença para sair.
- D.Hortense, peço-lhe que fique um pouco mais. E o Sr. Artur
Azevedo também. O senhor disse-me que tinha ido trabalhar para a
Alemanha há cerca de vinte e dois anos, e não tem família cá...
Ou se tem, é muito afastada, é assim?
- Sim, eu disse isso tudo. Mas francamente não estou a ver no
que isso possa ajudar a resolver este caso, ou seja, a morte de
meu filho...
- Tenha calma. O senhor mandou o Paulo passar férias cá em
Portugal, certo?
- Certo. O rapaz precisava bem de umas férias. Tinha morrido a
mãe, e entretanto, a mulher também o abandonou. O Paulo casou
muito cedo, tinha 17 anos...
- Senhor Artur, diga-me: foi só por essa razão que o senhor o
mandou para cá seu filho Paulo, para ele passar umas férias?
- Não estou a compreender a sua pergunta. O que é que o Sr.
inspetor está p'ra aí a insinuar? não o estou a compreender…
- Caro Sr. Artur, eu não estou a insinuar nada... Mas, se me
permite, volto a perguntar: foi só por ter falecido a mãe e a
mulher o ter abandonado?
- Pois claro que foi… Não estou a compreender esse tipo de
prosa... Porquê tanta pergunta?
- Não é por nada, ou por outra, a autópsia do corpo de seu
filho, acusou que ele tinha uma forte dose de droga dentro dele.
- Meu Deus, até mesmo aqui em Portugal …
- Lamento muito, Sr. Artur. Mas o Sr. já devia de saber deste
facto, pois a certidão de óbito, assim o menciona. Peço-lhe que
não pense que eu estou a criticá-lo.
- Sim, é verdade, mas o Paulo era meu querido filho - o meu
único filho. Tudo de valioso que tinha e esta…
- A D.Hortense tem 20 anos, assim como os apelidos de pai e de
mãe, certo?
-Certo, o que não é de admirar.
- Tem o local de nascimento, que foi na Marinha Grande?
- Francamente, Sr. Inspetor, não estou a compreender aonde quer
chegar?
- É que o nome de seu pai é igual ao nome do pai do Paulo, ou
seja, Artur Azevedo.
- Ah, não! Não pode ser... Esta mulher que matou meu filho...
- O Sr. Artur Azevedo, antes de regressar à Alemanha, há vinte e
tal anos, não aperfilhou nenhuma criança?
- Já em Portugal e para evitar conflitos judiciais, tive de
aperfilhar uma menina. A mãe dela chamava-se Alice... Alice
Azevedo, a tal senhora da Marinha Grande com quem casei e depois
divorciei-me. Só numas férias cá, é que soube que tinha
engravidado. Mas já tinha casado com outra pessoa.
- Mas... Mas, Alice Azevedo, era a minha querida mãe. Não, não
poder ser! Este homem ser o meu pai… ai não, não pode ser.
- D.Hortense, tudo indica que sim.
- Mas eu odeio, odeio! Só de pensar o que ele fez à minha pobre
mãe! E agora até me chama assassina! odeie-o, ouviu, odeie-o!
- Então quer dizer que... Esta senhora é minha filha... E irmã
do Paulo?! É bem certo que o Mundo é Pequeno.
- Por favor caro senhor, eu recuso-me a ouvi-lo chamar-me filha.
- Pois é, eu só descobri este facto hoje. É que tenho de
mencionar isto tudo no processo que estou a organizar. O Sr.
Artur Azevedo, perdeu um filho; a D.Hortense Azevedo, perdeu um
irmão...
- Um irmão?
- Sim, os factos assim o indicam. Além de ter espatifado o seu
carro, o que a põe em sérias dificuldades para poder exercer a
sua profissão.
- Estou tão desorientado com os acontecimentos, que nem sei como
hei-de começar... Hortense, peço-te desculpa pelo que te
disse... Perdoa a este velho...
- Há, não... Não venha agora para cá com desculpas. O processo
que siga os trâmites legais. Quanto a nós, vamos continuar a ser
o que sempre fomos: dois desconhecidos!
- Peço-vos desculpa por aquilo que lhes vou dizer, mas há certas
atitudes que não resolvem problemas, antes pelo contrário.
- Eu sei que é difícil desculpar-me, pois eu disse coisas a
minha... À D.Hortense, que não devia ter dito, mas... A vida que
Paulo levava em Portugal, já há muito tempo que me preocupava.
Depois veio a morte de minha mulher, depois o abandono da mulher
dele. O rapaz cada vez mais e mais se metia na droga; eu
preocupado, pensei mandá-lo uns tempos para cá, para ver se ele
recuperava. Que ideia a minha e o resultado que deu...
- Desse facto, ninguém o pode culpar Sr. Artur Azevedo.
- Bem, Sr. inspetor, para mim, o caso que aqui me trouxe, está
arrumado. Eu não quero voltar a ver este homem à minha frente.
- Peço-lhe que aguarde um pouco mais, D.Hortense. Senhor Artur,
a dona da pensão onde o seu filho esteve hospedado, trouxe-me
este malote, que era dele. Além da documentação e artigos
pessoais, vinha lá dentro esta carta, que eu penso que foi
escrita pelo senhor, não é verdade?
- Já nem me recordava dessa carta, tanta coisa de mau se passou
comigo ultimamente que eu já não coordeno bem as ideias.
- Confirme-me: foi o senhor quem escreveu esta carta, não
foi?...
- Claro que confirmo.
- Está endereçada a Alice Azevedo. Para recolher todos os dados
possíveis para o processo, eu abri a carta. Nela encontrei um
cheque de uma quantia elevadíssima, em nome de Alice Azevedo,
certo?
- É certo.
- Aqui tem o cheque e a carta, Sr. Artur Azevedo. Faça o que
quiser, pois são seus.
- Mandei o Paulo procurá-la, pois não sabia que tinha morrido...
- A mãe morreu, vai fazer dois anos. Coitada, esgotou-se a
trabalhar...
- Na carta, que eu tomei a liberdade de ler como já lhe disse,
para melhor poder organizar este processo, vi que o Sr. pedia
desculpa a D. Alice Azevedo, e mandava-lhe este cheque, para
minorar os transtornos que lhe tinha causado. E também queria
saber de sua filha.
- Sentia-me sozinho, e então, os remorsos por aquilo que tinha
feito, começaram-me a assaltar.
- Embora em situação pouco agradável, sempre conheceu a sua
filha.
- Senhor inspetor, por favor, não me diga que este homem é meu
pai !
- D.Hortense Azevedo, eu não estou a inventar nada, mas, se a
senhora não quiser como pai, o seu verdadeiro pai, terá que
modificar toda a sua documentação. Como?... Não sei! Até que
isso possa acontecer, o senhor Artur é o seu pai, D.Hortense!
- Mas... Mas eu não quero esse cheque...
- Creio que ninguém falou em dar-lho, e muito menos a obrigar a
aceitá-lo.
- É que eu sou muito orgulhosa de minha pessoa.
- Já tinha notado esse facto, D.Hortense!
- Porque tudo o que sou hoje, devo-o a mim própria!
- Parece-me que já a ouvi dizer que também devia a sua mãe. E
também a seu pai, porque sem ele, com certeza que não teria
vindo ao mundo.
- Mas ele chamou-me assassina, porque tive um acidente e
matei-lhe o filho.
- Que por sinal, também era seu irmão!
- Mas não me posso esquecer o que me chamou...
- Já aqui ficou demonstrado que seu pai passou por situações
muito desagradáveis, das quais não teve a mínima culpa. Mas
esses assuntos, digamos, familiares, já não são comigo. O
processo que vos trouxe aqui, está organizado. Amanhã será
entregue ao Tribunal.
- Mas... Senhor inspetor...
- Agradecia-lhe que assinasse aqui este recibo, para poder levar
tudo o que pertencia a seu filho. Peço desculpa a ambos por
aquilo que vou dizer: eu, como pai, e logicamente como filho,
lamento bastante que este vosso caso tenha caído neste grande
impasse...
- Eu já pedi desculpa a minha filha... A D.Hortense. Que hei-de
ou posso fazer mais? Nem sei se minha filha conhece a Alemanha?
- Não conheço, não...
- Bem, em minha opinião, depois de isto tudo estar mais calmo,
aceitava o convite de seu pai para visitar esse maravilhoso
país... Mas a D.Hortense é que sabe.
- Talvez … talvez nas férias de Verão eu resolva ir até lá...
Talvez...
- Amanhã regresso a Alemanha. Se quiser, pode ficar com o carro
que aluguei por três meses em Leiria? ...
- Mas eu não lhe pedi para me emprestar o carro que alugou...
Nem sequer falei nele!
- Pois … olha, tens aí um euro?
- Por acaso tenho...
- Dá-mo cá, por favor. Muito obrigado. Toma...
- Mas... Mas eu não quero as chaves do carro... Eu não o
aluguei...
- Pois não. Este euro, digamos, é o aluguer do carro até ao
Verão, que fica a meu cargo. Até quando fores visitar a
Alemanha.
- Muito obrigado … Pai …
FIM
Carlos Leite Ribeiro -
Marinha Grande - Portugal