AQUELA BONECA – de
Carlos Leite Ribeiro
(Peça teatral dramática)
Elenco:
- Fernando, 50 anos.
Frequentador do café "Ti
Pedro" e seu grande amigo
...
- Pedro, 65 anos. A quem o
povo chamava carinhosamente,
"Ti Pedro" ...
- Joana, 60 anos. A mãe de
Américo ...
- Maria do Carmo, 45 anos.
Foi ela quem criou a Eunice
...
- Américo, 42 anos. Para que
Eunice tivesse oportunidade
de ser operada quando era
ainda criança e, depois para
lhe pagar os estudos, entrou
numa de contrabando, e foi
preso. Depois, imigrou para
o estrangeiro …
Eunice, 22 anos. Durante
muitos anos apreciou e
desejou "aquela boneca",
nunca pensando que anos mais
tarde seria sua ...
Em todas as pequenas
localidades, existe sempre
um local, onde se sabe e se
discute a vida dos seus
habitantes. No local onde se
vai desenrolar a nossa
história, esse local de
encontro era o café do "Ti
Pedro". Uma pequena loja com
pintura e mobiliário já
muito antigo.
Atrás do velho balcão, o seu
proprietário, já
septuagenário, a quem o
povo, respeitosamente e
carinhosamente, chamava "Ti
Pedro".
Nas poucas prateleiras de
vidro que se encontravam por
detrás do balcão, na
prateleira central e em
destaque, encontrava-se uma
linda boneca, metida numa
caixa de celofane.
Aquela boneca tinha uma
história ...
Estávamos em princípios de
Junho, quando os dias
começam a aquecer. Neste
momento entra no café, o
Fernando, grande amigo do
"Ti Pedro" ...
Fernando: - Boa tarde,
Pedro. Os jornais já
chegaram ?
Ti Pedro: - Ainda não
chegaram, Fernando. O
Expresso, como
habitualmente, está
atrasado.
Olha lá amigo, bebes o
costume ?
Fernando: - Não, hoje
apetece-me... nem sei o
quê...
Ti Pedro: - Olha, "nem sei
o quê", é uma bebida que não
tenho cá !
Fernando: - Vejo que hoje
estás muito espirituoso.
Aproveitando essa tua boa
disposição, mais uma vez te
peço que me contes a
história dessa boneca, que
há tantos anos se encontra
aí atrás
desse balcão.
Ti Pedro: - Qual boneca ?!
... áh, a boneca. Pois está
aqui há mais de dezasseis
anos, mas, por estes dias
deve sair daqui.
Fernando: - Nem quero
acreditar que vás dar essa
boneca ...
Ti Pedro: - Estás
completamente engano, pois
eu vou dar esta boneca e com
grande prazer e à pessoa
certa !
Fernando: - Pedro, tu cada
vez estás a ficar mais
misterioso. O que se passa
contigo, homem?
vá lá, desembucha e diz-me
que mistério tem essa boneca
?
Ti Pedro: - Podes crer que
não tem mistério nenhum.
Nenhum mistério …
Fernando: - Então, se não
tem qualquer mistério, sê
amigo e conta-me a história
dessa boneca.
Ti Pedro: - Amanhã ou por
estes dias, conto-te.
(Entra em cena nova
personagem)
Joana: - Boa tarde, "Ti
Pedro" e Sr. Fernando. Olhe,
troque-me esta garrafa vazia
por uma cheia de vinho
tinto. Se possível, pode ser
fresquinho.
Ti Pedro: - Olha a tia
Joana ! então, tem tido
notícias do seu filho
Américo ?.
Joana: - Tenho, tenho. Ele
continua lá pelos
"estrangeiros". É a vida
dele, sabe ?
Fernando: - Vocês
desculpem-me de me meter na
vossa conversa. Se não me
engano, o seu Américo, desde
que imigrou para o
estrangeiro, nunca mais veio
a Portugal, pois não ?
Joana: - O meu filho é um
homem de vergonha e, assim
que saiu da prisão, foi logo
para o estrangeiro, e nunca
mais cá voltou.
Fernando: - Que pena ! um
rapaz tão trabalhador e tão
honesto ... custa a
compreender como é que se
meteu naquela embrulhada do
contrabando.
Joana: - Nem eu compreendo,
Sr. Fernando, pois, o meu
Américo sempre foi o que se
pode chamar "uma jóia de
pessoa" e um filho exemplar.
Agora é um inválido ...
Fernando: - O quê ? um
inválido ?! ... ora diga-me
lá o que se passa, tia
Joana...
Joana: - Não se passa nada
... nada, nada. "Ti Pedro",
dê-me a garrafa, pois estou
com muita pressa...
Ti Pedro: - É muito
curioso. A tia Joana,
habitualmente, não vinha
aqui comprar vinho, mas, há
uns tempos para cá, vem
todos os dias comprar uma
garrafa ...
Joana: - Sim, sim uma
garrafa; Sabe, é para, para
temperar o comer ... ganhei
agora o hábito de temperar
todos os comeres ... fazer
"vinho d`alhos” ...
compreende, não compreende ?
Ti Pedro: - Francamente,
não compreendo mesmo nada.
Mas enfim ...
Joana: - Bem, agora que já
estou aviada, tenho que me
ir embora ...
Ti Pedro: - Tia Joana,
fique mais um pouco, por
favor. Disse-nos há pouco
que o Américo estava
inválido ?
Joana: - Mas eu disse isso
?...
Ti Pedro: - Pois disse ...
Joana: - Então, foi sem
querer !
Ti Pedro: - Eu logo
compreendi que tinha sido
sem querer. Tia Joana,
diga-me: o Américo está cá ?
Joana: - Ai que chatice ...
deixe-me ir embora, "Ti
Pedro" !
Ti Pedro: - Tia Joana, o
Américo está cá ?
Joana: - Por favor
deixem-me ir embora !
deixem-me, deixem-me. E
Deixem-no a ele, ao meu
pobre filho, pois ele,
coitadinho, está inválido !
Fernando: - Tia Joana, o
que se passa, ou melhor, o
que se passou com o Américo
?... nós somos amigos dele e
por isso, temos o direito de
saber, para assim o podermos
ajudar.
Ti Pedro: - Tia Joana, o
Américo sofreu algum
acidente ?
Joana: - Meu Deus, que
infeliz que eu sou … o meu
pobre filho, sofreu um
acidente com a máquina que
trabalhava e, ficou sem um
braço. Aquele infeliz nunca
teve sorte na vida !
Fernando: - Lamento muito.
Coitado do Américo !
Ti Pedro: - Mas diga-me lá,
tia Joana, o Américo está cá
ou não ?
Joana: - Está cá, está. Mas
tem vergonha de sair de
casa. O espectro da prisão
persegue-o, e agora pior
ainda, pois não tem um
braço. Que infeliz é o meu
Américo !
Fernando: - Lamento muito,
mas mesmo muito. Mas, tia
Joana, por favor, acalme-se.
Ti Pedro: - Mas ainda bem
que o Américo está cá, pois
eu preciso muito de falar
com ele.
Joana: - Quem me dera que o
meu filho saísse de casa,
que convivesse com os
amigos. Que saísse daquele
quarto escuro, em que
voluntariamente se encerrou.
Talvez daqui a algum tempo
perca os complexos que hoje
tem, e então comece a sair.
Oxalá que comece novamente a
viver a conviver !
Ti Pedro: - Tia Joana, eu
hoje sem falta, tenho de
falar ao Américo !
Joana: - Falar para quê,
"Ti Pedro" ?! ... por acaso,
o meu filho ficou a
dever-lhe alguma coisa ? Se
é isso, diga-me por favor,
pois eu, apesar de ser muito
pobre, com certeza que lhe
pagarei ...
Ti Pedro: - O Américo não
me deve nada, e que eu
saiba, não deve nada a
ninguém. Mas eu preciso de
falar com ele, sobre um
assunto pessoal, de
interesse comum. Tia Joana,
pode crer que é um assunto
que interessa a ambos...
Joana: - Se por acaso o meu
filho vem a saber que eu
contei a alguém que ele está
cá, vai ficar muito zangado
comigo ! e eu não quero que
ele fique desiludido comigo,
que sou a sua mãe! O Américo
tem sofrido muito, muito, e
só eu, com o coração de mãe,
o posso compreender.
Desculpe-me, "Ti Pedro", mas
eu não lhe posso dar o seu
recado !
Fernando: - A tia Joana
pode-lhe dizer que eu, um
dia destes, passei perto de
sua casa e que o ouvi falar.
Logo fiquei muito
desconfiado, e que hoje, por
acaso, a encontrei no café e
lhe falei no caso. E a tia
Joana, sem querer caiu na
armadilha que eu lhe montei,
para saber se ele tinha ou
não regressado a Portugal.
Valeu ? ...
Joana: - Não sei, Sr.
Fernando ... se o meu filho
vai aceitar essa desculpa,
pois, como é natural, anda
muito desconfiado ...
Fernando: - Resulta, sim,
tia Joana ! vai ver que vai
resultar. Para mais, o rapaz
não pode passar o resto da
vida escondido. Lá por ter
estado preso por causa de
contrabando, e depois, ter
ficado sem um braço, quando
trabalhava no estrangeiro,
não é razão para ele se
esconder.
Ti Pedro: - Olha, Fernando.
Mudando de assunto, tenho a
sensação que vêm aí os
jornais.
Fernando: - Tens toda a
razão, pois também a mim me
parece que estou a ouvir o
barulho do motor do expresso
...
Joana: - E eu vou indo para
casa. Mas antes, peço-vos
que não digam a ninguém que
o meu filho Américo, está
cá.
Ti Pedro: - Fique
descansada, tia Joana !
Fernando: - Tia Joana,
peço-lhe que não se esqueça
de fazer o que eu lhe disse,
está bem ?
Ti Pedro: - Assim como
também não se esqueça, que
eu hoje, sem falta, preciso
de falar com o Américo !
Fernando: - Olha que nos
enganámos, Pedro. Ainda não
é desta vez que chegam os
jornais. O barulho que
estávamos a ouvir, era de um
expresso de excursão, mas
...
(Nova personagem entra em
cena)
Maria do Carmo: - Boa
tardes, "Ti Pedro" e Sr.
Fernando ! o tempo está a
aquecer. O que também não
admira, pois já estamos
perto do Verão.
Ti Pedro: - Olá garotona !
Fernando: - Aqui a nossa
querida Maria do Carmo, cada
vez está mais bonita !
Maria do Carmo: - Ora, ora.
O Sr. Fernando está sempre a
brincar comigo. Estou a ver
que hoje, o expresso, está
muito atrasado, não está ?
Ti Pedro: - Tens toda a
razão, Maria do Carmo.
Fernando: - E os jornais
hoje nunca mais chegam !
Ti Pedro: - A tua, ou
melhor, a nossa menina, a
Eunice, deve chegar ainda
hoje, não é verdade, Maria
do Carmo ?
Maria do Carmo: - Conto que
ela venha na próxima
carreira, pois já deve ter
terminado os exames finais.
Ti Pedro: - Que cabecinha
d` ouro que ela tem ! Por
isso é que ela tem sido uma
magnífica estudante e que
nunca chumbou nenhum ano !
Fernando: - E só de pensar
que ela, por causa daquela
doença nos ossos, passou
aqueles anos todos num
sanatório. Mas, felizmente
que hoje, quase não se nota
que ela coxeia um pouco.
Maria do Carmo: - Teve a
sorte de ter encontrado um
grande cirurgião, além de
ter também tido a sorte de
uma pessoa desconhecida, que
lhe pagou todas as despesas
da operação, e também os
estudos. Mas Graças a Deus,
a esta hora já deve estar
licenciada !
Fernando: - Sempre gostava
de saber quem foi esse
desconhecido que lhe pagou
tudo ?...
Maria do Carmo: - Eu também
não sei e gostava de saber;
mas nunca cheguei a
descobrir. E parece-me que
nem aqui o "Ti Pedro",
embora todo o dinheiro que
essa pessoa desconhecida
mandou para a Eunice, lhe
tivesse passado pelas suas
mãos. Ou será que o "Ti
Pedro" sabe quem é, e não
nos quer dizer ...?!
Ti Pedro: - Eu já vos tenho
dito muitas vezes que não
sei quem é. Por favor não me
venham agora com essas
conversas, porque eu já vos
tenho dito que também não
sei quem é essa pessoa; o
que também pouco interessa
...
Fernando: - Tenho-me
questionado se seria algum
dos muitos amantes que a mãe
teve ?
Ti Pedro: - Não, não é esse
o caso.
Maria do Carmo: - Também
não me parece que seja, pois
esses, só a exploraram. Por
isso é que a desgraçadinha
morreu na pior das misérias
!
Tio Pedro: - Já o pai
tinha morrido, tragicamente,
na chamada Guerra do
Ultramar. Se não fosse o tal
misterioso benfeitor, o que
teria sido da nossa Eunice ?
Fernando: - Aqui p`ra nós,
vocês não desconfiam mesmo
quem possa ser essa
misteriosa personagem ?
Ti Pedro: - Eu já vos disse
que não desconfio de nada
nem de ninguém !
Maria do Carmo: - Eu lá
desconfiar, desconfio. Mas é
assunto só para eu comentar
com os meus botões.
Fernando: - Por acaso será
que este mistério esteja
dentro daquela boneca, que o
"Ti Pedro" tem ali naquela
prateleira, há tantos anos ?
Ti Pedro: - Francamente,
por muita vontade que tenha,
não vos estou a compreender.
Aquela boneca não tem
qualquer mistério. Vocês
hoje é que se voltaram p`ra
aí ...
Fernando: - Mas o certo é
que tu já me disseste que
hoje, aquela boneca, ia sair
dali para sempre. Não foi ?
Ti Pedro: - E daí, homem ?
Em minha casa não poderei
dizer o que muito bem queira
?
Fernando: - Não é por nada,
Pedro, e por favor, não te
irrites. Para mais, daqui a
pouco deve chegar a Eunice,
já com o "canudo" e com o
título académico de
"doutora".
Ti Pedro: - Cá p`ra mim,
tu continuas a tentar
esconder alguma coisa ...
cada vez te compreendo
menos, Fernando !
Maria do Carmo: - Escutem,
escutem. Parece que estou a
ouvir o barulho do motor do
expresso. Vocês, por acaso,
não ouvem ?
Ti Pedro: - Sim, sim. Também
parece que estou a ouvir o
motor, do outro lado do
vale. Fernando, os teus
jornais já devem de estar a
chegar ...
Fernando: - Como sempre,
anseio que eles cheguem,
para saber o que vai por
esse mundo. Mas, não sei o
que sinto, ou melhor,
pressinto. Parece-me que
hoje vai acontecer qualquer
coisa de muito especial ...
(neste momento entra em cena
outra personagem)
Américo: - Boa tarde a
todos. A minha mãe disse-me
que o "Ti Pedro" me queria
dizer qualquer coisa ...
Ti Pedro: - Olha, mas és
tu, és tu, o Américo, o
filho da tia Joana ?!
Fernando: - Olha, o Américo
! que saudades já tinha de
ti !
Américo: - Sim, vocês não
se enganam, meus amigos. Sou
eu, o Américo,
ex-presidiário e maneta
permanente !
Ti Pedro: - Tu, meu rapaz !
que alegria me dás !
Américo: - Alegria ... ou
piedade ?! ...
Ti Pedro: - Qual piedade,
qual carapuça ! tu, com ou
sem um braço, és e serás
sempre o mesmo: um grande
homem !
Fernando: - Atenção que o
expresso, cada vez está a
aproximar-se mais ...
Ti Pedro: - Américo, por
acaso sabes que é que está a
chegar no expresso?
Américo: - Como é que eu
posso saber, se há tantos
anos estou afastado desta
terra ?
Ti Pedro: - Tens toda a
razão Américo, mas eu vou-te
dizer: deve vir lá a Eunice,
a nossa querida Eunice !
Américo: - De verdade ?!
... então, vou-me já embora,
"Ti Pedro" ...
Ti Pedro: - Não. Tu Não te
podes ir já embora, pois
ainda não falei contigo !
Américo: - "Ti Pedro",
deixe-me ir embora !
Ti Pedro: - Espera um pouco
mais, Américo. Olha p`ra
aqui: a boneca que há muitos
anos deste à Eunice, ainda
está aqui. Tu, antes de ires
para a prisão,
encarregaste-me de ser o seu
"fiel" depositário. Pois
bem, a Eunice ...
Maria do Carmo: - A nossa
menina, a nossa Eunice,
finalmente, chegou !
Ti Pedro: - O que vocês
querem dizer, é que a nossa
querida doutora Eunice,
chegou !
(entra em cena outra
personagem: a Eunice ...)
Eunice: - Olá !!! Mal estou
a chegar e já me estão a
ofender. Eu sempre fui e
continuarei a ser a Eunice,
a vossa menina !
Ti Pedro: - Mas tu agora,
tens um curso superior,
Eunice !
Eunice: - O que eu tenho é
uma valorização pessoal, que
muitos podiam ter, se
tivessem a sorte de
encontrar um benfeitor como
eu tive. Mas, com esta
barafunda toda, nem sequer
ainda os cumprimentei: Boas
tardes a todos ! ...
cheguei, sou a Eunice,
aquela menina que vocês bem
conhecem desde pequenina !
Ti Pedro: - Senta-te aqui,
ao pé do Sr. Américo.
Eunice: - Com todo o prazer.
Já há muito tempo que não
tinha o prazer de o ver. O
Sr. Américo, dá-me licença
que eu lhe dê um beijo na
sua face ?
Américo: - Um beijo ?! um
beijo a mim ?!
Eunice: - Porque não, Sr.
Américo ?! olhe que eu não
tenho nenhuma doença
contagiosa !
Américo: - Não é isso. È que
eu, é que eu ... já estive
preso e, além disso, não
tenho um braço ...
Eunice: - E o que é que
isso importa ?! ... se
esteve preso, pagou uma
dívida que teve com a
Sociedade; se teve um
acidente, do qual perdeu um
braço, é uma situação que
pode acontecer a qualquer
pessoa.
Américo: - E também já
tenho os cabelos grisalhos
...
Eunice: - Ora. Ora. A isso,
chama-se vaidade masculina.
Vejam lá por ter uns
cabelitos brancos, já se
considera velho ! o Sr.
Américo ainda é um belo
homem !
Ti Pedro: - Peço desculpa,
mas tenho de interromper a
vossa agradável conversa,
pois, à mais de dezasseis
anos que ando como
embuchado. Américo, está
aqui a boneca que tu,
naquele dia em que foste
preso, deixaste aqui, para
quando a Eunice acabasse o
curso, a entregar-lhe. Pois
bem, entrega-a tu. Eu, estou
velho, cansado, mas muito
feliz por ter cumprido esta
missão ...
Eunice: - Esta boneca é
para mim ?! ... e foi o Sr.
Américo que me ofereceu ?!
... muito obrigado. Como
sabem, eu sempre adorei esta
boneca. O "Ti Pedro" deve-se
lembrar bem que, quando era
pequena, ficava longos
minutos a admirá-la. Mas o
"Ti Pedro" nunca me disse
que a boneca era para mim !
Ti Pedro: - E também nunca
te disse que o teu
benfeitor, era o Sr. Américo
!
Eunice: - O Sr. Américo
?!!! ... mas, mas porquê ?
...
Américo: - Por favor, "Ti
Pedro", peço-lhe que não
fale mais neste assunto ...
Eunice: - Desculpe, Sr.
Américo, mas eu quero saber
tudo - tudo, percebem ? Eu
tenho o direito de saber,
por favor, digam-me ...
Ti Pedro: - É um conto
muito longo. Mas eu vou
tentar ser o mais sucinto
possível, pois encontro-me
muito cansado, muito doente.
Este meu coração ...
Américo: - "Ti Pedro", por
favor, não se canse mais,
pois não merece a pena estar
a falar mais neste assunto
...
Ti Pedro: - Merece, merece
meu rapaz. Para mais, eu
tenho de terminar este
trabalho que te me deste à
dezasseis anos. Eunice, vem
cá. O Sr. Américo sempre
gostou muito da tua mãe (da
tua pobre mãe, que tão cedo
nos deixou), mesmo antes de
ela ter casado com o teu
infeliz pai, que lá ficou
naquela maldita Guerra
Colonial ...
Fernando: - Pedro, tu não
estás bem, pois não.
Deixa-me pôr esta almofada
nas tuas costas ...
Ti Pedro: - Põe lá essa
almofada. Assim, estou muito
melhor - obrigado
Fernando. Mas como ia a
contar, tu eras muito
pequenina e já há muito que
estavas internada num
sanatório, para os lados de
Lisboa. Precisavas,
urgentemente, de seres
operada ...
Fernando: - Tu não estás a
sentir-te muito bem, pois
não, Pedro ? ... estás cada
vez a ficares mais pálido...
Ti Pedro: - Estou a
sentir-me muito cansado ...
ai, este meu coração ... mas
vamos ao que interessa. Tu
precisavas de ser operada
por um grande especialista,
mas não havia dinheiro. Foi,
para conseguir essa
importância, que o Américo
se meteu nessa do
contrabando, acabando por
ser preso. Mas, mesmo assim,
conseguiu o dinheiro
necessário para a tua
operação ...
Américo: - Por favor, "Ti
Pedro", não continue ...
Ti Pedro: - Já falta pouco,
podes crer ... depois de
sair da prisão, o Américo,
por vergonha e por
necessidade de ganhar
dinheiro para os teus
estudos, emigrou para o
estrangeiro ...
Eunice: - Eu, estou tão
confusa, tão surpreendida
... tão agradecida, que não
consigo encontrar palavras
adequadas para me exprimir !
Ti Pedro: - Dentro da
boneca, encontra-se um
papel, que eu quero que o
leiam ... depois de eu
morrer ...
Américo: - O "Ti Pedro"
está tão pálido ...
Eunice: - Atenção !!! ... o
"Ti Pedro" está a cair ! ...
por favor, chamem já uma
ambulância. Depressa,
depressa ...
Ti Pedro: - Não se
incomodem ... já não merece
a pena, meus filhos ... ai,
este meu coração ... olha
lá, Américo ...
Eunice: - Um médico por
favor, por favor
...
Ti Pedro: - A minha missão
... está cumprida ... parto
em paz ...
Eunice: - Morreu, morreu o
"Ti Pedro" - que bondoso
velhinho !
Américo: - Eu, um
ex-presidiário e um
inválido, é que devia ter
morrido !
Fernando: - Tu, Américo,
ainda não cumpriste a tua
missão cá na Terra. Hoje,
morreu um grande homem, o
"Ti Pedro". Amanhã morrerá
outro ...
»»
Américo: - Para o "Ti
Pedro", acabou-se tudo !
Maria do Carmo: - Se há
funerais bonitos, este foi
um deles ...
Eunice: - Tanta gente o
acompanhou até à sua última
morada ... ele bem o
mereceu, pois sempre foi
muito educado e bondoso para
toda a gente.
Maria do Carmo: - Descansa
em paz, "Ti Pedro" !
Américo: - E nós vamos
embora, pois nada mais
fazemos aqui ...
Maria do Carmo: - Nenhum
familiar dele o veio
acompanhar ...
Fernando: - Ele, também
nunca nos falou que tinha
família.
Maria do Carmo: - Então,
não deve ter descendentes
...
Eunice: - Pois não. E sendo
assim, é uma pena aquele
café ficar encerrado. Por
falar em café, tenho que lá
passar para ir buscar a
minha boneca.
Fernando: - E dentro da
boneca, como o "TI Pedro"
nos disse, deve de estar um
papel com alguma mensagem.
Por curiosidade, gostava de
saber o conteúdo dessa
mensagem ...
Eunice: - Então, podemos ir
agora todos ao café.
Maria do Carmo: - E até nos
calha em caminho.
Américo: - E assim podemos
a ficar a saber a última
vontade do "Ti Pedro" ...
««
Eunice: - Quem havia de
dizer que esta boneca um dia
seria minha ! madrinha,
estou tão impressionada...
Maria do Carmo: - A boneca
é muito linda, mas,
sobretudo representa um
gesto muito bonito de um
verdadeiro altruísta, ou
seja, o Américo.
Américo: - Por favor, não
falem mais em mim. Ainda me
obrigam a eu ir-me embora
...
Fernando: - Oh Américo,
modéstia em demasia, é um
grande defeito que deve ser
corrigido. Para mais, tu és
tão brioso !
Maria do Carmo: - O
Fernando tem toda a razão. O
Américo não pode ser tão
modesto, pois é um homem que
tem muito
valor.
Fernando: - Com esta
conversa toda, já estou a
ficar ansioso por saber qual
o teor da mensagem que o "Ti
Pedro" deixou dentro dessa
boneca.
Eunice: - Tenha calma, Sr.
Fernando, pois já vamos ver.
Américo: - A caixa de
celofane está deslocada na
parte de trás.
Eunice: - Tem razão, e é
por esse lado que eu vou
tirar a boneca do celofane
... olhem, cá o
papel. O Sr. Américo quer
lê-lo ?
Américo: - Eu mal sei ler.
Lê tu, Eunice ...
Eunice: - Então tomem muita
atenção: " A 2 de Janeiro de
mil novecentos e tal, no
cartório da cidade, fiz o
meu testamento, considerando
meu herdeiro universal,
Américo Araújo. Depois de eu
morrer, entreguem esta
mensagem ao Américo Araújo,
pois, a partir dessa data,
este café a ser dele ...".
Américo: - Não compreendo
... porque seria que o "Ti
Pedro" me fez seu herdeiro
universal ?! ... mas eu não
posso aceitar, para mais,
sou um inválido ...
Fernando: - O "Ti Pedro"
fez-te seu herdeiro
universal, porque te
apreciava muito. Agora, meu
rapaz, é preciso teres brio,
pois capacidade tens tu. E
este café não pode fechar
...
Eunice: - O Sr. Américo, só
é um inválido se quiser. Mas
eu, ou melhor, todos nós
temos confiança em si, pois
temos a certeza que irá
reagir. Madrinha, vamos
fazer a limpeza ao café ?
Maria do Carmo: - É p`ra
já. O "Ti Pedro", tinha os
utensílios de limpeza e os
detergentes todos bem
arrumadinhos, naquela
dispensa. Vou já buscá-los
...
Fernando: - E eu também vou
ajudar ... a limpar o pó,
claro !
Américo: - Ai aonde eu
estou metido ! ... um
inválido como eu, e além
disso, não percebo mesmo
nada deste negócio, pois eu
sempre trabalhei na
indústria metalúrgica ...
Maria do Carmo: - Olha
Américo, escusas de estar
p`ra aí com essas lamúrias,
pois ninguém te
está a ouvir. Vamos mas é ao
trabalho !
Fernando: - Se nós te não
conhecesse-mos tão bem,
diríamos que estavas a fugir
ao trabalho, e que não
querias fazer nada, alegando
que estavas inválido !
(Outra personagem entra em
cena : Uma Voz mais outra
Voz)
Voz: - Boa tarde. Vendo
refrigerantes, águas e
cervejas - o que é que
precisa para a próxima
semana ?
Américo: - O senhor
é o distribuidor ?
Voz: - Sou o empregado do
distribuidor ...
Américo: - Então, para a
próxima semana pode trazer:
três grades de sumos, duas
de águas e quatro de
cervejas.
Voz: - Muito bem. Então,
até p`ra a semana, e
obrigado ...
2ª Voz:: - Vizinho, pode
aviar-me um sumo de maçã,
sem borbulhas ?...
Américo: - Pois posso, pois
não estou aqui para outra
coisa. Olha, queres um copo
?
2ª Voz: - Pode ser e,
também quero daqueles
chocolates ...
Américo: - Este aqui ? ...
2ª Voz: - O que está ao lado
desse. Está aqui o dinheiro
e trocadinho ...
3ª Voz: - Um maço de
cigarros e uma bica curta.
Já chegaram os jornais ? ...
Américo: - Ainda não
chegaram, mas o expresso não
deve tardar aí. Queres que
te guarde algum ?
3ª Voz: - Eu espero pelo
expresso...
2ª Voz: - Vizinho, o
chocolate tem um prémio ...
Fernando: - Chiuu, cheguem
aqui. Estão a ver o que eu
estou a ver ? ...
Maria do Carmo: - Isto aqui
p`ra nós que ninguém nos
está a ouvir: o Américo tem
muito jeito para o negócio.
Até parece que passou toda a
sua vida atrás de um balcão
...
Eunice: - E sobretudo,
muita força de vontade. È um
homem brioso. Reparem como
ele, apesar de não ter um
braço, consegue tirar tão
bem as cápsulas das garrafas
!
Fernando: - Temos homem. O
café "Ti Pedro" vai
continuar ...
Américo: - E vocês aí só
falam, falam e não
trabalham. Daqui a pouco os
clientes começam a reclamar,
pois está muito pó no ar ...
!!!
FIM
Peça teatral dramática de
Carlos Leite Ribeiro –
Marinha Grande – Portugal