Os dois amigos de Carlos
Leite Ribeiro(ficção)
Depois de aposentado, o
Ricardo vagueava pelas ruas da Baixa de Lisboa, para
passar o tempo e recordar antigos episódios da sua vida.
Nesse dia, por casualidade, passou pelo café onde seu
amigo Alberto passava as tardes a ler o jornal. Entrou
no café e dirigiu-se logo para a mesa onde seu amigo
estava.
- Olá, Alberto, como vai essa saúde? Passas o tempo aqui
sentado e daqui a pouco nem andar consegues!
- Tinha o pressentimento que algo desagradável me ia
acontecer hoje. Não sabia o que era, mas com certeza que
eras tu que me ias aparecer! Já me vai correr a tarde
mal. Tu que andas sempre a vaguear pela Baixa, hoje
deu-te para entrares aqui neste café posso perguntar
porquê?
- Porque? Porque tinha saudades tuas e queria
cumprimentar o meu querido amigo, Alberto.
- Querido amigo? Por favor não me ofendas com esse
termo tão nobre, quando é verdadeiro!
- É o que eu sou: nobre e verdadeiro. E vim cá dizer-te
que ontem vi a tua querida Lena ainda te recordas
dela?
- És um verdadeiro finório (cara de pau). E o que eu
tenho com isso?
- Como foi a tua amada pensei que ficasses feliz por
eu a ter encontrado.
- És mesmo impossível. És sempre o mesmo amigo da
onça!
- Não sei porquê, pois até na altura tive a gentileza de
te apresentar a ela, o que ficaste (na altura) muito
contente. Pois uma avião (moça linda e apetecível não
aparecia todos os dias)!
- Já conheço essa conversa tua há muito, grande (nem
te quero classificar). Mas em que falaram. De mim?
- De ti não! Falámos das nossas anteriores passagens
pela vida. Mas vou contar-te tudo tim-tim por tim-tim?
Ontem fui dar um passeio até ao Terreiro do Paço e junto
à muralha que separa o rio Tejo, vi ao longe um vulto de
mulher que não me era desconhecida. Aproximei-me dela e
qual o meu espanto que reconheci a Madalena. A nossa
conhecida Lena!
- Olha quem encontro aqui, a
minha querida e inesquecível amiga Lena!
- O que é que fazes aqui? Já pensava que tivesses
morrido (o que não seria nenhuma pena?).
- Passei casualmente por aqui e mesmo de costas
reconheci-te. Ainda hoje és uma avião, embora
diferente do que conheci há anos, é certo
respondeu-lhe ele.
- Para ti é tudo casualmente, grande finório (cara de
pau). Deves estar a recordar as malandrices que fizeste
na outra Banda (margem esquerda do Tejo), principalmente
em Cacilhas e em Almada?
- Recordo-me daquela vez em que me convidaste a jantar
no Ginjal (Cacilhas); não me recordo bem em que
restaurante. Seria no Floresta?
- Nesse não foi de certeza, pois era muito caro para a
minha bolsa. Foi no restaurante Elias.
- Recordo-me. Até notei que tu eras freguês habitual
daquele restaurante, pois o garçon piscou-te o olhos e
levou-nos para a tua mesa preferida, junto de uma janela
que se via o Tejo e grande parte de Lisboa.
- Lena, tu tens boa memória! Claro que tinha ido algumas
vezes a esse restaurante ? com os meus pais.
- Deixa-me rir ahahah. Que ingénua eu era nessa altura.
Depois do jantar, quiseste que eu fosse a uma pequena
praia que ficava mais adiante do Gihjal, onde tu dizias
que tinhas pescado muito, com uma armação de dois varões
de ferro; fazias um triângulo com a linha e colocavas um sinizinho; depois lançavas a linha ao mar e quando o
peixe picava, o sininho tocava? Cara de Pau.
- Lena, a minha intenção era ensinar-te a arte de
pescar, nada mais?
- Ricardo, quase que estou a acreditar (só quase) é que
depois desse ensinamento, passaste à pesca em alto
mar, e longe do razoável:
- Parece que me estou a recordar, sim. Sabes que esta
memória já não é a que foi!
- Cara de Pau! Perdemos com a conversa o último barco
para Lisboa, pois quando chegámos ao cais de embarque,
já o ferryboat tinha partida há mais de uma hora. E
ficámos no teu decrépito e furado Wolksvagem, a quem tu
chamavas carochinha (no Brasil fusca).
- Querida amiga, e ficámos muito bem, até às 6.30 horas
quando do primeiro ferry para Lisboa.
- Tinha ido ao cabeleireiro fazer uns caracolinhos e
quando abri a janela do meu quarto para minha mãe não
saber a que horas tinha regressado, assustei-me a ver-me
ao espelho, com o cabelo todo desgrenhado (em
desalinho), além das nódoas de óleo que manchavam o meu
vestido novo, apanhadas na tua praia, onde prometeste
dar-me uma lição de pesca.
- Felizmente, tinhas deixado a janela de teu quarto só
encostada. Eras previdente?
- Só deixava a janela encostada quando saía contigo.
- E com os outros?
- Não comento. Mais tarde, houve outro dia que me
convidaste a ir a um baile, não em Cacilhas mas em
Almada. Não me recordo o nome da localidade que dizias
haver um grande baile.
- Parece-me que estou a recordar-me. Jantámos no
restaurante Gonçalves.
- Onde também eras conhecido?
- Nesse dia não fomos para a praia que tinha óleo na
areia. Subimos até ao castelo de Almada e depois
descemos uma descida muito íngreme até quase ao Olho de
Boi, onde descarregavam os barcos de pesca e onde me
tinha dito haver um grande baile (mentiram-me).
- Ricardo, não sei porquê não acredito, nem na altura
acreditei. Mas continua?
- Deve estar recordada que a estrada estava em reparação
do lado do mar (direito) e tivemos que fazer inversão de
marcha, e subir o que tínhamos descido. Quando chegámos
junto das muralhas do castelo?
- Num recanto que devias conhecer muito bem? Continua.
- O carochinha avariou e tivemos que passar lá a
noite. Dessa vez não te ensinei a pescar lembraste?
- Se me lembro, dessa tão estranha avaria, pois às 6
horas da manhã, o carro estava bom para apanharmos o ferry às 6.30 horas. Há avarias assim e tu eras mestre
em inventá-las!
- Pelo menos, nessa manhã não chegaste a casa com o
vestido com nódoas de óleo.
- De óleo vegetal, não, mas com nódoas negras (hematoma)
nas pernas, principalmente nos joelhos.
- Nesse dia também tive problemas com minha mãe por
causa das calças?
- Ricardo, por falar em tua mãe, ela era uma formidável
cúmplice tua. Atendia muito bem os meus telefonemas,
mas tu nunca estavas em casa; ou tinhas saído em
serviço da empresa, ou tinhas saída não sabia para
onde e por fim disse-me que tinhas ido fim-de-semana com
a tua noiva. Perguntei-lhe quem era tua noiva o que
ela me respondeu com grande descontração: não sei, são
tantas!. Cara de Pau, da pior espécie!
- Mas tu gostavas do cá cara de pau!!! rssss
- Na nossa última saída te fintei e muito bem
recordaste?
- Não. São fatos passados há tanto tempo?
- Vou-te recordar: Combinámos ir a um baile no Estoril.
Desta vez não fomos para a outra margem, que ainda não
havia a ponte 25 de abril (estava em começo de
construção). Jantámos em Oeiras e depois seguimos para o
Estoril. No regresso e como habitualmente, o teu
carochinha avariou perto da Parede. Enquanto tu
fingias que estavas a consertar o carro, eu
sorrateiramente, procurei a casa de uma amiga,
enfermeira no Sanatório da Parede. Faço ideia da rua
cara depois de teres esperado horas e eu não ter
aparecido! kakakaka
- Estou a recordar, estou. Esperei uma hora ou hora e
meia antes de regressar a casa de meus pais. Imagina
quão furioso eu estava, sua cara de pau, cafajeste,
pilantra, etc... Confesso que não achei graça nenhuma com
a tua atitude.
- Estás muito abrasilado, deves ter visto já muitas
telenovelas!
- Pois é, minha amiga, hoje a juventude tem mais
liberdade, mas no nosso tempo fazíamos tudo que eles
fazem, mas tínhamos que ser mais engenhocas.
- E nesse aspeto, Ricardo, tu eras um grande
engenheiro: Até talvez merecesses o Prémio Nobel.
- Estamos aqui parados e podíamos ir a qualquer lado?
- Eu vou ao Barreiro.
- Então podemos ir ao Barreiro?
- Tu é que sabes, mas na gare meu filho e meu neto estão
à minha espera?
- Certo. Podíamos marcar um encontro para outro dia?
- Talvez para o próximo século! Passa bem e se possível,
com mais juízo nessa cabeça oca!
- Então, inté?
- E foi assim amigo Alberto a minha conversa com a
nossa Lena! Na próxima vez que nos encontrarmos, pago
eu os cafés.
- Não disse que te pagava o café?
- Até à próxima, amigo!
FIM
(este texto é pura ficção,
qualquer situação, lugar ou pessoas é pura coincidência)
Carlos Leite Ribeiro - Marinha Grande - Portugal
POSFÁCIO
- de Humberto Rodrigues Neto
Neste interessante diálogo de autoria de Carlos
Leite Ribeiro, é de notar-se, inicialmente, a
fidelidade dos termos e expressões que costumam
ocorrer num bate-papo entre amigos.
Vê-se também, de início, que Alberto procura se
esquivar à abordagem de Ricardo, talvez por sabê-lo
um daqueles inoportunos amigos que todos nós temos,
a roubar-nos o tempo com longos e frívolos relatos
de fatos que nada nos trazem de proveitoso.
Todavia, a perspicácia de seu interlocutor inclina a
conversa para assuntos dos quais o amigo,
certamente, não desejaria fugir, ou seja, os
encontros que ambos haviam tido no passado com
“Lena”, cujo temperamento airado a induzia a
desfrutar ao máximo os prazeres da mocidade.
Ao relatar as peripécias por que passou em seus
encontros com ela, cita até os simulados defeitos de
seu automóvel, artimanha que até nós, quando moços,
utilizávamos para retardar tão agradáveis contatos.
Todavia, o autor desta historieta jamais revela
abertamente os detalhes mais íntimos de tais
contatos, evitando que a narrativa resvale para o
burlesco. Permite-nos, entretanto, adivinhá-los
apenas nas entrelinhas, a fim de não ferir
suscetibilidades.
É o que acontece quando Lena lembra Ricardo de certa
noite, quando, ao chegar a casa, notara em si
manchas rochas (ou equimoses) principalmente nos
joelhos, oriundas dos ousados assédios do parceiro.
Ora, arguto como é, Carlos Ribeiro não iria nos
dizer que tais escoriações ultrapassavam regiões bem
acima dos joelhos, esclarecimentos estes
desnecessários porquanto os próprios leitores
chegariam, fatalmente, a tal conclusão.
Ao despedir-se depois de encerrar o relato, Ricardo
promete pagar ao amigo o próximo café, mas ao ouvir
dele que aquele café ainda não estava pago,
retira-se sem mais esta nem aquela, na maior “cara
de pau”!
Este incidente explica o porquê de Alberto o ter
recebido em sua mesa com cara de poucos amigos.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_h/Humberto_Rodrigues_Neto.htm